Se você assistiu Ruptura, posso adivinhar que em algum momento se pegou parado, congelado em frente ao streaming. Talvez por causa do rosto cínico e franzido de Mark S ou os cenários brancos, gélidos e tensos. De repente, se questionou o que eles estão trabalhando na sala de refinamento e se assustou com a Cobel… E os ovos cozidos.
Como um fervilhão de emoções que não acontece, até onde minha lembrança permite alcançar, desde Game of Thrones, a série da Apple TV foi uma dose de emoção e ansiedade que não sentíamos há tempos. É o tipo de programa com um enredo fascinante por sua peculiaridade e falta de respostas, ouso dizer, pelos absurdos.
Me pegava até entediada em alguns momentos, dado os cenários parecidos e diálogos que parecem não fechar, mas não conseguia parar de ver. Era impossível não dar o play correndo em “Next episode” e receber mais 1 hora de conteúdo de qualidade.
Correndo o risco de parecer obcecada, nos lançamentos da 2ª temporada, acordava 4h da manhã de quinta para sexta com aquele sentimento esquisito que dá na barriga quando estamos vivendo grandes momentos.

O que Ruptura nos ensina sobre comunicação, cultura e identidade?
Você já sentiu que o discurso dentro das organizações parece mais um mantra do que uma diretriz? Já leu um e-mail motivacional que, no fundo, te deu calafrios? Se sim, talvez Ruptura (Severance, da Apple TV+) fale mais com você do que imagina.
A série, que mistura ficção científica e crítica corporativa, nos leva para dentro da Lumon Industries, uma empresa fictícia que vai muito além do controle de jornada ou do dress code. Ali, a comunicação é ferramenta de poder. O branding está em todos os lugares preenchendo os sentidos e doutrinando os presentes no ambiente. A cultura interna? Quase um culto. Vamos chamar de culto.
Vem entender melhor como a série cutuca sociedades ao questionar os limites entre vida pessoal e profissional.

A estética da Lumon transborda posicionamento. Corredores infinitos, tons neutros e design com cara de startup retro-futurista… Tudo milimetricamente planejado para apagar o indivíduo e nutrir o ecossistema.
Exibem uma identidade visual meticulosa que mistura elementos vintage com atmosfera futurista, uma paleta restrita e brutalista que reforça a sensação de alienação e controle.
O logo da empresa, com uma gota dentro da letra “O”, é sutil, mas não à toa. Projetado por Tansy Michaud, remete a logos farmacêuticos dos anos 1970 e transmite autoridade e atemporalidade. Essa gota poderia ser uma referência ao chip implantado nos funcionários severados, ou até uma “gota de sangue“, como sugerem fãs.
Cada parede, uniforme, documento e tela da Lumon repete seu universo visual como um lembrete. Aqui, você não é você. Você é um ativo da organização. E você não quer ter uma conversinha na “Sala de Descanso” ou com o “the board”, né?

Ainda sobre os pontos-chave bem amarrados e intrigantes que vale a pena assistir:
Em Ruptura, o branding não é feito para o cliente. É feito para os colaboradores. Ou melhor, para os “internos”.

Consistência em todos os pontos
Lá dentro, tudo o que é dito serve para manter a ordem. Os manuais são tratados como escrituras. As reuniões de “bem-estar” repetem frases como “seu externo é uma pessoa gentil” e “tente gostar de todas igualmente” em um tom doce, robótico, sem emoção.
A linguagem é padronizada, eufemística, quase anestesiante. “Refinamento de macrodados” não deveria significar nada, e esse é o ponto. Quando as palavras perdem sentido, o pensamento crítico enfraquece, mas o mantra permanece: o trabalho é misterioso e importante.
E aqui vem a reflexão que me deu o que pensar:
• Quantas empresas reais você conhece que usam a comunicação para silenciar, em vez de apoiar?
• Quantas marcas criam universos difíceis de entender e precisam recuperar verba e valor com um rebranding?

Ritual, recompensa e repressão
Se você já trabalhou batendo metas, gerenciado times ou dividindo lucro entre equipes, tá mais do que familiarizado com os incentivos de bonificação, brindes de chocolates ou packs de cerveja, e gincanas entre colaboradores para mantê-los engajados e motivados. 😊
Como o universo de Ruptura é depressivo e tenebroso, os incentivos e premiações para os “internos”, funcionários que criam existências paralelas dentro da empresa, são “Festas de Ovos Cozidos”, “Festa de Melão” e em ocasiões especiais, “Festa de Melancia”, todas acompanhadas de muito jazz e percussão.
Tudo calculado para parecer acolhedor aos olhos deles, mas bizarro para nós.
Nos bastidores das coreografias bem ensaiadas por Milchick (Sr. Milkshake), o que se reforça é a lógica do controle. Quem não baixa a cabeça, perde regalias ou vai para a “Sala de Descanso”, metáfora literal para a punição institucionalizada.

Branding como arquitetura emocional
O maior triunfo da Ruptura é transformar a Lumon em lar. Mesmo sendo opressora, ela oferece uma estrutura tão coesa – estética, linguagem, rotina, hierarquia – que os “internos” sentem que pertencem. Eles têm toda uma vida lá dentro, são pessoas.
A comunicação, aplicada em sua forma mais intensa, cria um universo completo em que a filosofia do Kier ocupa espaço físico, simbólico e emocional. Passa longe de ser uma relação de funcionários / empresa minimamente aceitável. Os “internos” vivem dentro da Lumon. Eles são devotos.

E, cá entre nós (e o LinkedIn), a fronteira entre identidade profissional e pessoal está cada vez mais difusa. A série leva isso ao extremo. O “eu do trabalho” e o “eu de fora” se tornam dois seres distintos. Literalmente.
Mas essa dissociação não é tão distante assim do nosso cotidiano.
Quantas vezes você já se sentiu uma versão fragmentada de si mesmo? Ao tentar atender às expectativas de um cargo, de um time, de uma cultura? Não precisa colocar o capuz e o óculos para passar batido. Todos nós sentimos isso em algum momento da vida. Ruptura apenas escancara nas telas.

E se a Lumon fosse real?
Antes mesmo da estreia da série, a Apple TV+ criou perfis da Lumon no LinkedIn. Postagens corporativas, fotos do time, cultura da firma, tudo seguindo o manual de comunicação corporativa.
Um verdadeiro sucesso do branding, teve gente perguntando se a empresa existia. Marcas reais com nomes parecidos começaram a receber mensagens de fãs como “Louvado seja Kier!”
São indícios que o universo de Ruptura é tão crível e bem construído que ecoou como realidade. Porque, no fundo, ele é. E tem todo aquele papo de “a arte imita a vida” né?
Na LAJE, acreditamos que branding é alinhamento entre discurso, prática e propósito. E Ruptura mostra intencionalmente o que acontece quando esse alinhamento existe… só que usado para o lado errado. O the dark side of the branding.
A série é uma aula sobre o poder da comunicação e como faz as pessoas se sentirem. Vale para qualquer organização, de qualquer porte. Vale pra quem lidera, pra quem comunica, pra quem projeta cultura. Branding é ferramenta de transformação. Você sabe usá-la?
Caso não esteja familiarizado com o conteúdo, assista o trailer abaixo já controlando a respiração:
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Autor: Anna Montenegro | Redatora Sênior na LAJE e anacouto